Hoje abandonada, a casa de esquina entre as ruas General Osório e Dom Aquino, em Campo Grande, já esteve no centro do debate público nacional. Até pouco tempo atrás, a pintura de um feto com os dizeres ‘deixe-me viver’ intrigava quem passava, sem saber que ali funcionou uma clínica de abortos clandestina, por onde passaram mais de 10 mil mulheres.
Para contar essa história, é preciso voltar a 2007, quando a veiculação de uma reportagem em um jornal local quebrou um acordo que, há quase duas décadas, havia sido firmado entre a médica Neide Mota Machado e a sociedade campo-grandense. Embora os abortos fossem de conhecimento geral, a clínica de planejamento familiar realizou os procedimentos de forma clandestina entre 1989 e 2007.
Na época em que veio a público, o caso ganhou grande repercussão nacional. Em meio à pressão política e social, a polícia invadiu a clínica. Por ordem judicial foram apreendidas mais de 9.000 fichas, caixas do medicamento Citotec e apetrechos ou instrumentos que seriam utilizados para os abortos.
A partir das provas, a justiça incriminou Neide Mota, assim como seus funcionários. Segundo o Ministério Público, a médica era procurada por mulheres da Capital, do interior e também de outros Estados que pagavam valores entre R$ 1.000,00 e R$ 3.000,00 pelo procedimento.
‘Caso das 10 mil’
A história voltou aos holofotes com toda força em setembro de 2023, no formato de um podcast de 6 episódios do jornal Folha de S. Paulo.
Num deles, a informação de que os processos judiciais se estenderam às mulheres que optaram por interromper a gestação, incluindo até mesmo aquelas que procuraram a clínica, mas não realizaram o aborto, que na época já era considerado crime. Milhares de mulheres tiveram suas informações pessoais vazadas e ficaram à mercê de julgamentos na esfera jurídica e social.
Dos quase 10 mil prontuários, cerca de 1200 viraram casos concretos. Os processos se arrastaram por cerca de dois anos. Outros 8.300 casos não tinham fortes indícios ou estavam prescritos, razão pela qual a justiça os arquivou por falta de justa causa que justifique uma investigação criminal.
A pena máxima para mulheres processadas por aborto corresponde a 3 anos de reclusão. No entanto, a pena mínima para esse crime é de 1 ano, o que permite um benefício no sistema penal: a suspensão condicional do processo, sob certas condições, levando ao eventual arquivamento do processo.
Confissão e responsabilização
No caso das 10 mil mulheres, a promotoria ofereceu essa alternativa às pacientes, assim como a um único homem acusado de pagar pelo procedimento. Conforme a Folha de S. Paulo, se elas confessassem o aborto, poderiam interromper o processo criminal.
Entretanto, o acordo estabelecia algumas condições. Primeiro, elas deveriam comparecer mensalmente ao fórum criminal por dois anos. Além disso, não poderiam deixar Campo Grande por mais de um mês sem autorização judicial e não poderiam ser acusadas de nenhum outro crime durante esse período de dois anos.
Dias antes do julgamento, a médica Neide Mota foi encontrada morta. O laudo do IALF (Instituto de Análises Laboratoriais Forenses) apontou que ela morreu por “asfixia medicamentosa”, quando um medicamento paralisa os órgãos vitais. A justiça condenou quatro ex-funcionárias a cumprir pena em regime semiaberto, com penas variando entre 4 e 7 anos.
Mais tarde, o ‘Caso das 10 mil’ viria a se tornar o maior processo judicial de aborto ocorrido no Brasil.
Ameaça aos direitos reprodutivos
Passados 17 anos desde o caso das 10 mil, o aborto volta ao centro do debate político nacional. No entanto, agora a discussão gira em torno de restringir direitos reprodutivos das mulheres conquistados há mais de 80 anos.
Um projeto, que tramita no Senado Federal, propõe equiparar o aborto ao crime de homicídio. Se aprovado, o PL 1904/24 estabelece a punição de seis a 20 anos de prisão para quem realizar a interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação, mesmo nos casos previstos em lei. Pena maior que o próprio crime de estupro, que prevê de 6 a 10 anos de reclusão, podendo chegar a 12 anos.
Em 1940, a legislação brasileira estabeleceu condições para o aborto legal. Assim, permitiu-se a interrupção da gestação nos casos em que a gravidez resulta de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mulher. Em 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) incluiu o direito a aborto quando o feto é anencéfalo, ou seja, não possui cérebro.
Assim, meninas, mulheres e demais pessoas que gestam enquadradas em um desses três casos conquistaram o direito ao aborto legal gratuito pelo SUS (Sistema Único de Saúde). No caso de gravidez que ponha em risco a vida da gestante ou de feto anencéfalo, não há limite de semanas de gestação para realizar o aborto.
O que diz a legislação?
Em casos de abuso sexual, o tempo limite para o aborto é de 20 semanas de gestação, ou 22 semanas caso o feto pese menos de 500 gramas. Além disso, a atual legislação estabelece que, em casos de violência sexual ou estupro, o abortamento não se condiciona à decisão judicial, não havendo exigência de alvará ou autorização, mas sim a presunção da veracidade da vítima. Em ambos os casos não há criminalização do aborto, o que pode mudar mediante ao novo projeto em tramitação.
Em 12 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 1904/24 em regime de urgência. A aprovação gerou revolta entre mães, movimentos feministas e defensores dos direitos humanos, uma vez que, na prática, vítimas de estupro que descobrem a gestação de forma tardia, após 5 meses, perderão o direito ao aborto legal.
Aborto é questão de saúde pública?
Uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, fez pelo menos um aborto no Brasil. Os dados são da PNA (Pesquisa Nacional de Aborto) de 2021, a principal referência sobre o aborto no país. Para OMS (Organização Mundial da Saúde) o aborto é visto como um serviço de saúde essencial.
Crenças religiosas e demagogias à parte, tratar o aborto como uma questão de saúde pública é abrir os olhos para um problema que nunca deixou de existir. Embora ilegal, muitas gestantes recorrem a clínicas precárias para realizar o procedimento de forma clandestina, colocando a própria vida em risco.
Entre 2020 e 2024, Mato Grosso do Sul julgou 64 processos judiciais relacionados ao aborto, conforme dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Os números mostram ainda que o Estado registrou 57 novos processos pela prática de aborto durante esse período.
Dentre esses casos, a maioria corresponde a abortos praticados por terceiros, com 30 registros entre 2020 a 2024. Em seguida, aparecem 25 casos de abortos provocados pela gestante ou com seu consentimento. Outros nove estão categorizados como aborto qualificado, ou seja, aqueles com agravantes específicos, como a utilização de métodos que causam maior sofrimento à gestante ou resultam em lesões graves.
Nesses três casos, a legislação brasileira considera o aborto como crime, com pena prevista de 1 a 4 anos de reclusão.
Em MS, mais de 70% dos abortos legais decorreram de estupro
Mato Grosso do Sul bateu o recorde de casos de estupro em 2023, com 2.742 ocorrências. No mesmo ano, o número de gestantes que recorreram ao aborto legal dobrou em relação ao ano anterior, passando de 20 para 48 entre 2022 e 2023.
A análise dos dados revela uma correlação entre o aumento dos casos de estupro e o número de gestações resultantes de violência sexual. No ano passado, 36 pessoas que realizaram abortos legais eram vítimas de estupro, o que corresponde a 75% dos casos registrados naquele ano.
Em 2024, o percentual de abortos legais realizados em decorrência de violência sexual subiu para 94%. Entre janeiro e junho, Mato Grosso do Sul realizou 18 abortos legais, dos quais 17 decorreram de violência sexual e um devido à malformação fetal (anencefalia). Dentre essas 17 vítimas, duas eram adolescentes entre 13 e 15 anos, e um era um homem trans.
Em 2024, MS registrou 34 gestações em menores de 13 anos
De janeiro a junho deste ano, Mato Grosso do Sul registrou 33 nascimentos cujo as gestantes tinham entre 10 a 13 anos, conforme o painel de nascidos vivos da SES (Secretaria Estadual de Saúde). Em contrapartida, o hospital referência no atendimento a vítimas de abuso sexual realizou apenas um aborto legal em meninas nessa faixa etária.
As estatísticas do Ministério da Saúde mostram números ainda maiores. Os dados preliminares referentes aos nascidos vivos indicam que, somente neste ano, 88 meninas de até 14 anos deram à luz. Em Campo Grande, foram registrados 41 casos.
Esses dados evidenciam uma problemática alarmante, onde cerca de 2% dos nascidos vivos resultam de estupro de vulnerável.
Nessa perspectiva, é importante salientar que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) considera como criança toda pessoa até 12 anos incompletos, e adolescente entre 12 e 18 anos. Enquanto no Brasil, a idade de consentimento para relação sexual é de 14 anos.
Portanto, no caso de relações sexuais com crianças ou adolescentes abaixo da idade de consentimento – até 13 anos – o abuso sexual é legalmente presumido como crime, mesmo que não haja violência e independentemente da idade do parceiro, se este for maior de 18 anos. Assim, toda gestante que se enquadre nessa situação tem o direito ao aborto legal garantido por lei.
Direito para quem?
“Não podemos revitimizar mais uma vez meninas e mulheres vítimas de um dos crimes mais cruéis contra as mulheres, que é o estupro, impondo ainda mais barreiras ao acesso ao aborto legal”, declarou ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, um dia após a aprovação do PL. A revitimização ao qual a ministra se refere consiste em um fenômeno no qual a vítima experimenta um sofrimento continuado e repetitivo, mesmo após cessada a violência originalmente sofrida. Algo recorrente para vítimas de violência sexual.
Em 2024, uma adolescente de 17 anos procurou um dos hospitais autorizados a realizar o aborto legal no Estado para interromper uma gravidez decorrente de estupro. No entanto, teve seu direito negado devido a uma portaria do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proibia médicos de realizarem o procedimento após a 22ª semana de gestação.
A norma, publicada no começo de abril, determinava que, a partir dessa idade gestacional, os profissionais ficariam impedidos de realizar a assistolia fetal. Esse procedimento que consiste na injeção de uma substância que provoca a morte do feto, sendo posteriormente retirado do útero da gestante. O procedimento possui respalda da OMS (Organização Mundial da Saúde) a partir das 20 semanas de gestação.
Ainda em abril, a Justiça acolheu um pedido do MPF (Ministério Público Federal) e suspendeu a norma do CFM. No mês seguinte, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu a resolução do Conselho Federal de Medicina.
Republicado de https://midiamax.uol.com.br